Tuiávii, Chefe da Tribo Tiaveá na Polinésia
O papalagui gosta do metal redondo e do papel pesado; gosta de meter para dentro da barriga muitos líquidos que saem das frutas mortas, além de carne de porco e de vaca e de outros animais horríveis: mas ele gosta principalmente daquilo que não se pode pegar e que, no entanto, existe: o tempo. Nunca existe mais tempo do que aquele que vai do nascer ao pôr do sol e, no entanto, isto nunca é suficiente para o papalagui.
O papalagui nunca está satisfeito com o tempo que tem; e acusa o grande espírito de não lhe ter dado mais. Chega a blasfemar contra Deus, contra sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo em pedaços cada dia que se levanta de acordo com um plano muito exato. Divide o dia tal qual um homem partiria um coco mole, com uma faca em pedaços cada vez menores. Todos os pedaços têm nome: segundo, minuto, hora. O segundo é menor que o minuto, este menor do que hora; juntos, minutos e segundos formam a hora e são precisos sessenta minutos e uma quantidade maior de segundos para fazer o que se chama de hora.
É uma coisa complicada que nunca entendi porque me faz mal estar pensando mais do que é necessário em coisas assim pueris. Mas o papalagui disso faz uma ciência importante: os homens, as mulheres e até as crianças que mal se têm nas pernas usam na tanga, presa a correntes grossas de metal, ou pendurado no pescoço, ou atada com tiras de couro ao pulso, certa pequena máquina, redonda, na qual lêem o tempo, leitura que não é fácil, que se ensina às crianças, aproximando-lhes do ouvido a máquina para diverti-las.
Esta máquina, fácil de carregar em dois dedos, parece-se por dentro com as máquinas que existem dentro de grandes navios, que todos vós conheceis. Mas também existem máquinas do tempo grande e pesadas, que se colocam dentro das cabanas, ou se suspendem bem alto para serem vistas de longe. Para indicar que passou uma parte do tempo, há do lado de fora da máquina uns pequenos dedos; ao mesmo tempo, a máquina grita e um espírito bate no ferro que está do lado de dentro. Sim, produz-se mesmo muito barulho, um grande estrondo, nas cidades européias quando uma parte do tempo passa.
Ao escutar esse barulho, o papalagui queixa-se: “Que tristeza que mais uma hora tenha se passado”. O papalagui faz, então, uma cara feia, como um homem que sofre muito; no entanto, logo depois vem outra hora novinha.
Só consigo entender isso pensando que se trata de uma doença grave: “O tempo voa!” “O tempo corre feito um corcel!” “Dêem um pouco mais de tempo!” – são as queixas do branco.
Digo que deve ser uma espécie de doença porque, supondo que o branco queira fazer alguma coisa, que seu coração queime de desejo, por exemplo, de sair para o sol, ou passear de canoa no rio, ou namorar sua mulher, o que acontece? Ele quase sempre estraga boa parte de seu prazer pensando, obstinado: “Não tenho tempo para me divertir”. O tempo que ele tanto quer está ali, mas ele não consegue vê-lo. Fala em uma quantidade de coisas que lhe tomam tempo, agarra-se taciturno, queixoso, ao trabalho que não lhe dá alegria, que não o diverte, ao qul ninguém o obriga senão ele próprio. Mas, se de repente vê que tem tempo, que o tempo está ali mesmo, ou quando alguém lhe dá um tempo – os papalaguis estão sempre dando tempo uns aos outros, é uma das ações que mais se aprecia – aí não se sente feliz, ou porque lhe falta o desejo, ou está cansado do trabalho sem alegria. E está sempre querendo fazer amanhã o que tem tempo para fazer hoje.
Certos papalaguis dizem que nunca têm tempo: correm feito loucos de um lado para outro, como se estivessem possuídos pelo aitu; e por onde passam levam a desgraça e o pavor de terem perdido o seu tempo. É um estado horrível, esta possessão que não há médico que cure, que contagia muitos homens e os faz desgraçados.
Todo papalagui é possuído pelo medo de perder o seu tempo. Por isso todos sabem exatamente ( e não só os homens, mas as mulheres e criancinhas) quantas vezes a lua e o sol saíram desde que, pela primeira vez, viram a grande luz. De fato, isso é tão sério que, a certos intervalos, se fazem festas com flores e comes e bebes. Muitas vezes percebi que achavam esquisito eu dizer, rindo, quando me perguntavam quantos anos eu tinha: “Não sei...” “Mas decia saber”. Calava-me e pensava que era melhor não saber.
Ter tantos anos significa ter vivido um número bem preciso de luas. É perigosa essa maneira de indagar e contar o número de luas porque assim se chega a saber quantas luas dura a vida da maior parte dos homens. Todos prestam muita atenção nisso e, passando um número muito grande de luas dizem: “Agora não vou demorar a morrer”. E então essas pessoas perdem a alegria e morrem mesmo dentro de pouco tempo.
Pouca gente há na Europa que tenha tempo, de fato; talvez ninguém mesmo. É por isso que quase todos levam a vida correndo com a velocidade de pedras atiradas por alguém. Quase todos andam olhando para o chão e balançando os braços para caminhar o mais depressa possível. Se alguém os faz parar, dizem, mal-humorados: “Não me aborreças, não tenho tempo, vê se aproveita melhor o teu. Dá a impressão de que aquele que anda mais depressa vale mais do que aquele que anda devagar. [...]
Só uma vez me deparei com um homem que tinha muito tempo, que nunca se queixava de não tê-lo, mas era pobre, sujo e desprezado. Os outros passavam longe dele, ninguém lhe dava importância. Não compreendi essa atitude porque ele andava sem pressa, com os olhos sorrindo, mansa, suavemente. Quando lhe falei, fez uma careta e disse tristemente: “Nunca soube aproveitar o tempo, por isso sou pobre, um bobalhão”. Tinha tempo, mas não era feliz.
O papalagui emprega todas as forças que tem e todos os seus pensamentos tentando alongar o tempo o mais possível. Serve-se da água e do fogo, da tempestade, dos relâmpagos que brilham no céu para fazer parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés, dá asas às palavras que diz para ter mais tempo. Mas para que todo esse esforço? O que é que o papalagui faz com o tempo? Nunca compreendi muito bem. [...]
Acho que o tempo lhe escapa tal qual cobra na mão molhada justamente porque o segura com força demais. O papalagui não espera que o tempo venha até ele, mas sai ao seu encalço, não deixa que o tempo descanse ao sol. O tempo tem de estar sempre perto dele, cantando, dizendo alguma coisa. Mas o tempo é quieto, pacato, gosta de descansar, de deitar-se à vontade na esteira. O papalagui não sabe perceber onde está o tempo, não o entende e é por isso que o maltrata com seus costumes rudes.
Ó amados irmãos! Nunca nos queixamos do tempo; amamo-lo conforme vem, nunca corremos atrás dele, nunca pensamos em ajuntá-lo nem parti-lo. Nunca o tempo nos falta, nunca nos enfastia. Adiante-se entre nós aquele que não tem tempo! Cada um de nós tem o tempo em quantidade e nos contentamos com ele. Não precisamos de mais tempo do que temos e, no entanto, temos tempo que chega. Sabemos que no devido tempo havemos de chegar ao nosso fim e que o grande espírito nos chamará quando for sua vontade, mesmo que não saibamos quantas luas passaram. Devemos livrar o pobre papalagui, tão confuso, de sua loucura! Devemos devolver-lhe o verdadeiro sentido de tempo que perdeu. Vamos despedaçar sua pequena máquina de contar o tempo e lhe ensinar que, do nascer ao pôr do sol, o homem tem muito mais tempo do que é capaz de usar.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
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Este texto possibilita reflexões diversas sobre a vida na contemporâneidade. Obrigada Lili, pela bela contribuição!
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